A grande afeição de um cão
Bem ali, centrada num enorme cinturão verde da mesorregião do leste maranhense, infiltrada na microrregião do Itapecuru, nasceu a Princesa do Sertão Maranhense, a donzela mais bela do Estado do Upaon-Açu, berço cultural do ilustre filho Gonçalves Dias, e tantos outros poetas que adornaram os cabelos longos e esmeraldinos das terras das palmeiras. É o luar recôndito dos políticos, povos e escritores que olvidaram ao longo das esmagas, repudiar nos barrancos da história a invernada perpetrada dos índios ribeirinhos do baixo sertão. Surgiram nos longos beirais do barro vermelho, povo rudimentar que plantaram e semearam uma cultura não escrita pelo homem branco, porém, conhecida nos embriões dos que subestimaram – os Guanarés. Naquele dia chuvoso, Manoel acorda bem cedo, observa pela fresta da única janela do quarto, o som leve e macio da criação divina cair no terreiro em gotas finas e contínuas. Já na idade transformada de um futuro que não esperou, mas, os dias assomaram circunstâncias geradas no amanhecer, ele contava com sessenta e oito anos de longas primaveras. Residindo naquele humilde casebre coberto de palhas de babaçu com paredes revestidas de barro. Manoel já não sentia a solidão acender o pavilhão das noites destemperadas do convívio social. Porém, gozava de farto conhecimento na região por onde passava, desfrutando experiências que somente as pupilas foram capazes de navegarem. Instantes, Tabu iniciou a latir, avisando que a abertura do dia estava pronta para mais uma jornada ao amigo Manoel. Embora, acordando com um ar de preguiça, os dois mantinham confiabilidade, amizade e segurança a todo preço. Era uma família completa e mais companheiro do que o próprio retrato humano lançado no meio social. Entretanto, a singeleza redobrada do animal obedecia regramentos nas ambições confortáveis de convivência com o seu dono. Era um vira lata que certo dia, o camponês encontrou abandonado pelas ruas de Caxias, averbando neste, o nome do produto de higiene e beleza “Talco Tabu”, que o campesino utilizava na década de setenta no formato de fabricação em lata. Frisa-se que a serventia do estimado cão absorvia certa qualidade entre ambos, delineada no companheirismo irrefutável e inseparável que vislumbrava nos tendões de cada dia. Naturalmente, esse bálsamo adjudicava um córrego de inclinações sem desamparar o seu acolhedor e dono, movido na camaradagem presencial. E desta maneira, por onde Manoel esboçava os passos, ali estava coevo a qualquer hora o animal, deslizando os préstimos elevados na captação da linguagem e gestos emitidos entre eles. E, no mencionado amanhecer, o senil ainda, abrindo a boca, disse: -Tabu, você não me deixa dormir. Né? Ainda bem que cai uma chuvinha. Sabe, existem momentos que acordo triste e tudo me invadem. E sinto a dor e a solidão, mas, nada me deprime quando você chega perto de mim e me faz feliz. O cão sacudiu as orelhas, e começou a lamber as pernas do homem, colocando com as patas dianteiras em suas pernas. E não suportando mais, disse: -Desce Tabu! Chega! Olha, a gente sempre fica imaginando ser uma fortaleza, às vezes, pensamos que não podemos sentir uma dor. Não é verdade? É tão bom passar na estrada e cumprimentar um vizinho ou estranho. Passar por onde tem muitas pessoas e dá um bom dia ou pelo menos dizer, por favor. Já na cidade grande é bem diferente, as pessoas cruzam um ao outro como verdadeiros estranhos. Quando estive em São Paulo, eu via muita gente todo dia, morando ao lado da casa da minha irmã. Fiquei indignado com o que vi. Pessoas entrando e saindo sem lhe dirigir um oi ou olá. É triste, tudo isso. Mais é a vida da cidade grande. Quer bolacha? Tabu abriu a boca e passou a língua na perna do ancião, momento em que recebeu o alimento, e aviou Manoel, em seguida afirmou: -Amanhã bem cedo, vamos à cidade. Eu vou ao Banco pegar o meu aposento. Bem ali, morando naquela localidade conhecida como Sambaíba, o velhinho todos os meses pegava a lancha que subia o Rio Itapecuru entre o município de Aldeias Altas e Caxias, aportando no bairro da Galiana no centro da cidade. A lancha era o único transporte em que o cachorro poderia ingressar sem ocasionar transtornos aos passageiros. E nesse mencionado dia, a lancha não rasgou as costuras das águas escuras do Rio Itapecuru ao destino programado, insatisfeito, Manoel retornou ao lugarejo, ao passar por um pé de cajazeira, exclamou em bom tom: -Veja Tabu! O chão tá amarelo! Todo amarrotado de cajá. Que tal uma chiberemba de cajá com farinha seca e açúcar. Vou me passar pra elas que nem um bicho. Esse monte dá um chibé gostoso, Tabu. A minha janta à noite vai ser uma chiberimbada de lascar o cano. O cão deitou-se, observando a agonia do velhinho em pegar as frutas no chão, que dizia em voz alta: -Que frutinha azeda, Tabu! Vai acabar com o meu açúcar. Amanhã eu compro mais quando eu for pra cidade. No dia seguinte, às quatro horas da manhã, os dois companheiros seguem o atalho a pé que liga a estrada poeirenta entre a Aldeias Altas e Caxias, cuja via, supõe-se aparentar com as estradas do Afeganistão, diferenciando apenas a vegetação, clima e os pontos geográficos. Seguindo em passos medidos, vai lanceando a fadiga, e a lua cortada ao meio desenha a solidão na entonação prateada do sertanejo viajante. São dezessete quilômetros em que a paciência sabe adornar o caminho da esperança na diretriz suportável da visão entre os dois amigos. É uma jornada travada na velocidade das horas em que o coração prontamente consegue realçar as razões exatas para chegar. É neste ponto em que as espectativas entorpecem no árduo novelo da vida. E naquela cadência melódica, o cãozinho segue à sombra do homem, distinguida na pisada iluminada da mãe lua que tudo abrevia em sentido contrário. É a valia da existência, ensejando na lateral direita da velha estrada, a serenidade futurista da abertura por trás dos paus pombos. Talvez, o resultado da fotossíntese nesse bioma crescente: enfileirados, adormecidos e hirtos, são as palmeiras verdejantes. Tão quietas e hipnotizadas com o xodó vigorante do luar que vai abandonando o sertão para o rei sol nascer em poucas horas. O sinal de cansaço na face do ruralista desafia a vontade celebrada nos olhos de não poder alcançar os ditâmes elevados da vibração quotidiana. E, de repente, uma dor no abdômen apareceu, e o ancião gritou em direção ao cão: -Me acode Tabu! Não tô aguentando mais. Ai... Ai... Deve ter sido as cajás que me ofenderam. O cachorro sem entender o que fazer, pulou, latiu e lambeu o seu dono. Instantes, Manoel, avisou proferindo: -Vou na capoeira derramar essa massa. Fica aí me esperando que eu vou fazer uma necessidade. Viu Tabu? O cão sentou-se assustado e permaneceu naquele local da estrada, enquanto o homem segue uma picada fechada de mato com vinte metros. As horas se consomem, e Tabu pressentindo a demora do companheiro, acompanha farejando. Embora escuro o cão encontrar um obstáculo, abaixa a cabeça e percebe o seu dono adormecido num buraco de aproximadamente cinco metros. Um corte profundo na cabeça do velhinho, exalava ao cão que prontamente latia, rosnava e se enfurecia com a cena quebrando as moitas do melão São Caetano em volta do poço velho abandonado. O cachorro latia incansavelmente na circunferência do buraco, tentando de todas as maneiras acordar o seu amigo. Nada proveitoso, o tempo não se abria, e o canino emitia um gemido profundo, ia e voltava na mesma direção, mas, retornava com ladrados fortes. Eram sete horas daquela manhã, já não existiam moitas ao redor do poço, tudo estava arrebentado pelo ardente ato de bravura do animal em salvar o homem. Nem mesmo o cansaço compartilhava com o cão que não arredava os olhares em plena agonia. Um longínquo barulho na estrada fizera com que o animal saísse em disparada ao encontro de ajuda. Eram dois carvoeiros que vinham à frente de um caminhão em suas bicicletas que não perceberam o latido do animal que arriscava morder os pneus das bicicletas na ilusão frustrada de parar. Em seguida, o barulho do caminhão de carga acelerava o tempo com a robusta cobertura de poeira que assentada na vegetação silenciosa e que tudo assistia sem resposta. A mulher que vinha de carona no caminhão, gritou: -João! Não mate o cão? Desviando bruscamente à direita, argumentou o motorista: -Esse vira lata só pode está louco por estas bandas. Nunca vi isso por aqui. Tá louco sô. Em vão, Tabu regressou ao local onde Manoel jazia em sangue. Olhando que ele não escutava e não mexia com os membros, continuou a ladrar para todos os lados. Já bastante agitado, corria de um lado para o outro, inutilmente. E com suas orelhas direcionadas ao caminho, Tabu silenciou-se ao lado do buraco ao ouvir um som de baixo volume numa distância de mais de cinco quilômetros. Apoiando-se nas habilidades superiores aos seres humanos em localizar com exatidão o comando. Logo, o cão percebeu em centésimos de segundos que se tratava de outro veículo. Era o ronco de motor de um automóvel, e rapidamente, rebaixa a cabeça apurando mais uma vez o cheiro do idoso que não respondia, saindo em disparada. Ao meio da poeira há mais de dois quilômetros em alta velocidade, surgiu um veículo, rumando ao pequeno município de Aldeias Altas. O miúdo animal no meio da estrada carroçal produzia pulos e cambalhotas com aproximação do auto. A senhora em seu automóvel, exclamou: -Meu Deus! Um cão! Imediatamente, a mulher freou bruscamente, e disse: -Esse cão é louco mesmo. Putz! Quase me acidento. Tabu não interrompeu as cambalhotas e ladridos em frente ao automóvel. Com medo, a senhora permaneceu quieta e nervosa com as artimanhas do cão que vorazmente atravancava o trajeto. Após alguns minutos, Tabu se dirigiu para a extremidade da estrada e latiu forte com várias cambalhotas, virava-se com um ladrido em direção ao mato. Eram latidos com intervalos longos como que pedisse algo. A senhora sem entender, principiou a observar o que o cachorro estava arriscando mostrar alguma coisa no matagal. Ainda com receio, ela abriu a porta, e o cão latiu com intervalos médios com as orelhas para trás, avisando que um caso estava acontecendo. Com a cabeça dobrada à direita, o canino emitia dois latidos curtos e secos suavemente. E nesta marcha, assinalava um meigo olhar, observando melancolicamente a dura labuta em pedir para salvar o seu dono. Com a subida do cão, a mulher notou que o animal possuía uma bela coleira de gradação negra. Impulsionado, o notável animal, novamente late e corre para a trilha, e se posiciona, emitindo um uivado triste e de dor. Rapidamente, a senhora compreende que o cachorro manifestava ardentemente um modo estranho com a intenção de apresentar algo. Uivando intercaladamente com a cabeça içada na direção do atalho, a senhora bate a porta do carro e sai, seguindo o animal que adentrou na mata. Naquele lúgubre trajeto, Tabu transmitiu as suas emoções, latindo por quatro vezes com a cabeça virada ao buraco. A mulher olhou assustada, e disse: -Meu Deus! Um homem no fundo do poço, e ainda ferido. Nossa! Como esse cão suportou tudo isso? Coitadinho! Ele quer salvar o seu dono. Nervosa, abriu a bolsa e pegou o celular, ligando em seguida, disse: -Por favor! É do Socorrão Doutor João Viana? Tem um homem ferido que caiu num poço. Por favor! É urgente. Estou aqui na Estrada Caxias a Aldeias Altas, quilômetro trinta e seis. Venham logo! -Sim. Estamos levando ajuda, agora. Acalme-se senhora, dentro de quinze minutos estamos aí. A mulher retornou ao automóvel, e o cão com a pelugem branca encima das ramas de melão São Caetano, apenas abria a boca com a língua latejando numa manifestação de cansaço. Minutos adiantados, o idoso é resgatado e levado para o Pronto-socorro Doutor João Viana em Caxias. Na estrada de chão, a ambulância desenvolvia alta velocidade abalizando uma abertura grossa de poeira com a sirene ligada. Ocasião em que o motorista, por várias vezes observou no retrovisor da lateral direita, e exclamou, falando com o enfermeiro: -Júlio, eu acho que a minha visão não está enganada. E não acredito no que estou vendo. -O que você está delirando? Sorriu o enfermeiro. -É um vira lata que vem acompanhando a ambulância pelo acostamento. -O quê? Um cão? Você tá de brincadeira, né. -Se está duvidando. Vou tirar o carro para a direita, talvez ele vá para o seu lado. Aí me diga se eu estou sonhando acordado. Realizada a manobra, o enfermeiro confirma: -Nossa! Estranho! Nunca vi um cão correr tanto como este aí. Parece que ele voa para alcançar a mesma velocidade da Assistência. Incrível! O animal não se enfastia, empreendendo severa corrida até ao destino. E prontamente na porta do Pronto-socorro, Tabu nota os enfermeiros levando Manoel bastante debilitado numa maca e se deita próximo à entrada principal. As horas se consomem com o timbre dos minutos que vencem as ondas do tempo com a sede e fome que os atinge. Sem demora, Tabu percorre um território estranho, invadindo na madrugada o hospital e sendo expulso pelo guarda municipal. Cambaleando na calçada larga da Av. Getúlio Vargas do centro da cidade, imprime o olfato e busca junto ao Mercado Central os resíduos de feiras lançados na lixeira até saciar a fome. O dia se abre pelo segundo dia, e Tabu permanece em plena vigilância, acompanhando a melhora do paciente até o momento da liberação ou transferência para outra unidade hospitalar. A noite se embriaga e vai se perdendo com o trânsito minguado da rua, imperando o silêncio na dimensão em que o sono é a alma despida nas pupilas. E o animal deitado na calçada quente, permanece com o movimento das pupilas direcionado na imparcialidade da tranquilidade do hospital. Eram quatro horas da manhã, quando o cão aproveita a porta semicerrada e penetra no recinto, cuidadosamente, farejando vai ao corredor “A” da ala 02, sala 214, e cheira o seu dono que dorme. Insatisfeito, Tabu dar um latido curto e seco numa tonalidade moderada com a intenção de saudar Manoel. Inesperadamente, um paciente chama a enfermeira plantonista que adormecia numa cadeira na sala ao lado. Com precisa agilidade, Tabu foge, indo dormir satisfeito na calçada, além de ter marcado vários territórios na cidade com a sua urina. E assim, com cinco dias beirados nas noites, não desamparou o seu único amigo e companheiro. E na última manhã de sol ardente com sombras vivas das árvores, ali estava Tabu alegre e festivo a observar uma ambulância que saía pela lateral do hospital. Não houve indagações, com o olfato apurado, sabiamente, ele balançou o rabo e sacudiu as orelhas, empreendendo uma nova viagem ao lugarejo Sambaíba, no segundo Distrito da cidade. A ambulância ao sair da área urbana de aproximadamente quatro quilômetros e adentrar na selvagem estrada do Afeganistão em Caxias, notou o motorista que conduzia o paciente de volta para casa, vez que recebera alta, oportunidade em que o motorista olhou pelo retrovisor um cão, disse: -Nunca vi coisa igual, moço? -Não entendi. -Um cachorrinho vem me seguindo desde a minha saída do Hospital João Viana. A gente vê cada coisa nesse mundo! Sorriu o motorista. Ao chegar à residência do idoso, o motorista indaga: -Esse cachorro que vem me seguindo de Caxias até aqui é seu? -Sim. É o meu Tabu. Tabu, cheguei! Naquele inusitado momento, o cão ficou latindo intercaladamente, e Manoel abraçou e beijou a sua estimação num abraço longo e fraterno. Passados três meses, numa madrugada, Tabu late e rosna bastante no terreiro da casa. Eram dois ladrões tentando se livrar do cão que enfrentava os marginais com ferocidade. Atacado por um pedaço de pau lançado contra o cão, este caiu, desmaiando. O velhinho se levantou da rede e surpreendido pelos ladrões que procuravam pelo dinheiro da aposentadoria nos aposentos da casa, recebeu uma coronhada na cabeça de revólver 38, desnorteado, caiu entre a sala e o quarto. Instantes em que um dos malfeitores bastante nervoso, grita ao outro: -Atira nesse condenado, porra. Vai! Manda logo pro inferno! Atira! Com a arma apontada, e o gatilho pronto para a explosão, Tabu se lança ao meio e o tiro atinge a cabeça. Manoel acorda com o estampido deflagrado no estimado cão, e diz: -Não mate a minha vida companheira. Levem o dinheiro, é tudo o que tenho. O marginal, com a arma na mão, ouve o comparsa falar em tom agonizante: -Completa o serviço. Esse velho é problema para nós. Vai. Atira! Uma lagoa de sangue se formou ao lado da cabeça do idoso, ocasião que os assassinos partiram com destino à cidade de Caxias. Ali, o corpo caído sem a alma, Manoel com o braço direito estendido no chão, não vive o ar da existência e o seu cão, arrasta-se no último suspiro, lançando-se ao peito do seu criador e companheiro. E a vida é sempre um capítulo em que a notícia não corre nos telejornais, nem mesmo o paladar da justiça é capaz de naufragar o império do crime. Apenas, o desenrolar do espírito que voa na simples lembrança dos moradores daquela pobre localidade distanciada do modernismo em que viveu Manoel e o seu cão. ERASMO SHALLKYTTON
Enviado por ERASMO SHALLKYTTON em 07/04/2012
Alterado em 29/11/2012 Copyright © 2012. Todos os direitos reservados. Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor. |