Kabul – O menino afegão e o seu saxofone
O dia amanheceu com o céu completamente azul na central asiática do Afeganistão, embrulhado naquele território onde demarcou nos lençóis da história o caminho da seda, das emigrações humanas, guerras e grandes impérios. A conquista se mostra como ponto crucial dos invasores em toda a civilização, enfrentando campanhas e propagandas militares onde possivelmente todos desejam manter concentradas as vias de acesso nas fronteiras com ponto referencial geoestratégico para a Ásia.
O calor abria uma fronte de luzes fortíssimas em Marja, localizada no distrito de Nad Ali, bem próximo de uma área tribal, onde várias famílias ruralistas descendentes dos pashtuns nômades realizam atividades agropecuárias no cultivo de trigo, arroz e milho. Naquela manhã calma, Rabi convoca todos os aldeões para buscar água fresca na localidade de Kareze Saydi numa distância de sete quilômetros. No entanto, o clima ardente e a seca que abria fendas no solo, evaporava as únicas lagoas e fontes para os tribais e animais daquele lugar.
Era aproximadamente, seis horas da manhã, o manto azulado no empíreo transcorria na serenidade daquela aldeia, entre várias mulas, éguas, burros e cavalos que desciam os vales carregando os recipientes com as crianças em seus lombos. Com roupas cinza e azuladas, as mulheres vestiam uma burca cuja roupa cobria todo o corpo, rosto e olhos, seguindo a linhagem do Alcorão para não atrair a atenção dos homens e os desejos da carne com suas curvas, outras mulheres usavam uma vestimenta combinado com uma roupa tipo social em calças folgadas com um alto gargalo túnica e mangas compridas em tecido de seda dourada com mesclado de várias cores cujo traje é traço representativo da cultura milenar afegã. Embora os homens com enfeite na cabeça nas cores verde, preta e azul utilizavam como chapéu, o tradicional pakul e roupas tipo saia reta aberta em ambos os lados. Alguns aldeões levavam no trajeto da viagem alimentos prontos como sher berinj de arroz doce, bojan salada, requeijão cozidos e Mântua de pudim de carnes.
À frente, as mulas iam desempenhando um papel importante no transporte de cargas, momento em que um menino olha no fundo do horizonte uma aeronave. E grita:
-Pai, um avião!
-Aonde meu filho!
-Lá nas montanhas, bem baixinho.
-Sim, estou vendo. Está indo na direção de Baluquistão.
-Pai, será que ele vai nos atacar?
-Não. Isso não pode acontecer, não fizemos nada contra os americanos. Por isso, ele está apenas passando bem distante.
Tão longínquo a aeronave deslizava suavemente entre as montanhas brancas e cinzentas numa missão de reconhecimento. Era um avião espião da Força Aérea Americana conhecido como “Aspirador de Pó no Céu” em solo afegão com elevada sofisticação, o EP-3E Áries II com sistema aéreo eletrônico integrado de reconhecimento. A sua demasiada utilização é sugar todas as comunicações eletrônicas da terra, tais como e-mails, chamadas telefônicas, fax, transmissões via satélite, além de escutar áreas em segredo com movimentações e fotografar alvos, processando e reenviando aos comandantes militares em operação na região. Seus sensores, receptores e antenas com radiofrequência mapeiam com inteligência as áreas, não utilizando armas, sendo operado por uma tripulação de 24 pessoas que dispõem de um grande laboratório de análises, pilotos, um navegador, três analistas técnicos, engenheiro de voo, operadores de equipamento, técnicos e mecânicos.
A jornada em busca de água reunia aproximadamente uma enorme fileira naquela única estrada poeirenta com cascalhos e pedras com mais de cem pessoas entre crianças, mulheres, jovens, homens e idosos. A partir daquele instante, todos os afegãos submergiam na frustração desencadeada do medo, apesar de que não havia mais ruídos nos céus e nenhuma aeronave riscava mais. Ainda com medo, as crianças vasculhavam todo o céu durante a viagem.
E as mulas têm desempenhado um papel crucial na guerra carregando alimentos, armas e outros suprimentos necessários pelos exércitos. Nascidas a partir de um burro e uma égua, eles se tornaram preferência para o transporte de cargas devido à sua maior resistência. Da sala de comandos, o tenente Vick envia uma mensagem no radiocomunicador para o centro de operação da OTAN em Cabul utilizando o alfabeto Internacional Fonético com a seguinte frase.
-Lima–Oscar–Bravo-Oscar–Sierra---Fostrot-Uniform-Golf-India-November-Delta-Oscar---Papa-Alfa-Romeo-Alfa---Kilo-Alfa-Romeo-Echo-Zoulou-Echo---Sierra-Alfa-Yankee-Delta-India---Charlie-Oscar-Mike---Charlie-Alfa-Romeo-Golf-Alfa
E que diz o seguinte: “Lobos fugindo para Kareze Saydi com cargas”
Imediatamente, o comando militar em Cabul recebeu as fotografias e enviou para a base secreta. Naquele esconderijo no deserto de um país vizinho, quatro militares estavam jogando sinuca quando receberam ordens para efetivar uma vigilância com ataque em alvo perigoso na localidade de Marja e Kareze Saydi.
Sorridentes e tranquilos, os jovens militares entraram na cabine de operação e acionaram os botões dos computadores, acionando o motor de um drone que estava na pista pronto para a operação. Alçando voo rapidamente, a aeronave cortou os céus silenciosamente. Atingindo uma velocidade de setecentos e quarenta quilômetros por hora numa altitude com mais de vinte mil metros.
Aquela arma de matar silenciosamente riscava o céu, invisível para os sistemas de radar e sem tripulantes, era apenas pilotada via controle remoto por um militar a longas distâncias. Ali, sentado e observando o trajeto da aeronave, recebia na tela do computador a transmissão de imagens em tempo real e retransmitindo para o Pentágono. Tomando café com os colegas e dando gargalhadas, o americano pilotava o avião como se fosse um videogame. Sem demora, o zangão envia as primeiras imagens do suposto alvo, ocasião em que um deles disse:
-Opa! Hoje vai ter muito presunto nas mesas dos afegãos. Olhem que coisa linda!
O chefe do comando completou sorrindo:
-Vai ser uma varada daquelas! Com essa visita de surpresa, vão encontrar até sapatos no Paquistão.
Robert que estava acompanhando as imagens, disse:
-Ligue os sensores infravermelhos, por favor!
-Ligados e prontos para irem ao destino com sete mil noivas.
Robert surpreso, disse:
-Há muitas crianças, mulheres e idosos. Não aperte agora. Vamos acompanhar tudo isso.
Vick já zangado disse:
-Afinal de contas quem está no comando dessa operação sou eu. Não admito que terceiros me digam o que devo fazer. O alvo está perfeito e sem retorno. Não vê que eles carregam armas e papoulas nas mulas disfarçando com mulheres e crianças.
-Não faça isso Vick! Ali estão pessoas que nada têm a ver com os Talibãs.
-Para mim, pouco importa se há ratos ou gatos. Recebi ordens para navegar e atirar. Lá vou eu... Vou encurralar todos e mandar dois bombons, deixando uma linda nuvem de poeira por mais de dez horas naquele inferno. Esta é a minha América dos Estados Unidos que ninguém pode, é a maior potencial mundial há mais de um século. Eu amo os Estados Unidos da América e fico feliz com um ataque bem-sucedido. Viva Obama! O rei da guerra e da Paz.
O drone atingindo uma distância de dois mil metros do alvo lança o primeiro míssil, após o segundo, este abre uma cratera do tamanho de um campo de futebol. Os corpos espatifados em miniaturas e lançados a centenas de metros tornaram-se irreconhecíveis. Os jornais e a televisão distribuíam a notícia de que um comboio com drogas e armas dos insurgentes fora desbaratado com um ataque por drone numa área rural de Marja e Karezy Saydi em que todos foram mortos.
Por trás de uma plantação de uva, ao lado de um tanque de guerra russo desativado, encontrava-se um menino com a perna ferida e desmaiado. Passados vários dias, e sem condições de andar apenas se alimentando de uvas e berinjelas, o ferimento coberto com folhas de uvas e terra, tornava-se insuportável o mau cheiro das carnes apodrecidas. O garoto procurou abrigo dentro da máquina velha de guerra, encontrando um caixote de madeira fechado. Com bastante curiosidade, o miúdo abre e encontra um instrumento.
As horas passam e a febre torna-se companheira infalível dos tormentos até que um agricultor pela manhã ouve um barulho vindo do tanque de guerra, e vai até o local e se surpreende com o menino caído sobre o caixote. O homem pega a criança e o caixote levando para o hospital mais próximo da cidade a procura de ajuda.
Não faz muito tempo que no sul do Afeganistão houve massacres e mutilações realizada pela Organização do Atlântico Norte – OTAN, na região de Helmand e Marja com mais de quinze mil soldados na operação aclamada de “Mushtarak” onde os marines asseguraram vitória sobre os militantes da milícia islâmica do Talibã. Sabe-se que franco-atiradores do Exército americano se posicionaram nos tetos das casas, e unidades de marines e de policiais afegãos ficaram responsáveis pela segurança numa verdadeira carnificina.
No hospital, o garoto conhecido como Adib descreve em prantos as doloridas lembranças aos outros pacientes, que apenas assistem. Com as pupilas abatidas e sem poder andar, sofria o pequeno sem os pais, amigos e vizinhos do lugarejo Marja, olhando a perna direita amputada. O médico daquele paupérrimo hospital dava prioridade ao garotinho que não sorria, apenas chorava ao lado da caixa, o que muito lhe chamou à atenção, dizendo:
-Adib, o que tem nesta caixa?
-Um aparelho, doutor.
-Deixe-me ver.
-Sim.
O médico abriu a caixa, e disse:
-É um saxofone. Você toca?
-Não. Eu o achei dentro da carcaça de um tanque. É bonito e levo comigo.
-Vou falar com um amigo meu para lhe ensinar a tocar. Você quer?
-Sim, e muito doutor. Em nome de Alá, o misericordioso, eu lhe agradeço do fundo do meu coração.
-Ainda não terminei. Mas, estou tentando arranjar com o governo uma perna mecânica para você andar e se sentir mais feliz.
Passados meses, Adib já desenvolvia bem a perna mecânica, podendo caminhar como qualquer outra pessoa, além de tocar muito bem o sax, residindo no hospital, ele abria uma amizade com todos que trabalhavam. Numa tarde, Três explosões de bombas lançadas pela OTAN próximo ao hospital fizera o menino fugir com o saxofone para a autoestrada. Na beira da via, ele estendeu o braço com a caixa na mão e subiu na carroceria do caminhão de verduras. Sem saber os laços do destino, os olhos delimitavam os sonhos na poeira que ficava para trás num eco de emoções que somente Alá poderia afirmar o seu caminho. No balanceamento das rodas, trepidava o pobre coração sem o riso que transportado nas manhãs da localidade de Marja que outrora se perdeu na visão.
Entrando na cidade mais populosa do Afeganistão, Adib observa o Rio Cabul com suas águas leves descendo nas encostas de onde nasce das altas montanhas de Sanglakh. Ao atravessar a ponte do Rio Cabul observa a velha cidade que não dorme no leito das montanhas e guerras. Assustado, Adib mergulha os olhos ligeiramente entre os prédios e lugares públicos por aonde o caminhão velho vai deixando para trás as butiques, farmácias, fast-food, lojas e pessoas nas ruas, assim é Cabul.
Eram nove horas da manhã, próximo ao mercado aberto, o caminhão para e Adib desce com a caixa na mão observando crianças da sua idade trabalhando, uns lavando carro, outros carregando frutas e muitos correndo de um lado para outro numa ilusão perdida no conflito que explode. Lidando com a tragédia no clarão dos olhos, a guerra não intimida o pequeno Adib que abre a caixa e retira o saxofone numa esquina movimentada.
Um garotinho, indaga:
-Você é músico? Como se chama?
-Sou. Meu nome é Adib.
-Você mora aonde?
-Não tenho casa, eu cheguei agora. E o que você faz?
-Eu peço dinheiro batendo nas portas. Às vezes dá pra ganhar por dia vinte afeganes. E quantos anos você tem?
-Doze anos. E qual é o seu nome?
-Meu nome é Abud. Eu tenho nove anos. Eu não tenho mais pai, só mãe. A minha casa foi bombardeada pelos americanos em Kandarah e lá todos morreram. Somente eu e minha mãe escapamos.
-Eu perdi tudo, nada eu tenho a não ser Alá.
-Adib, tenha cuidado com o homem de olhos azuis.
-Qual o motivo?
-Ele é perigoso. Pega as crianças nas ruas e leva para um asilo de uma ONG. Chegando lá, ele trata muito bem as crianças e depois nos vende para a América.
A gente fica adotada noutro asilo e depois eles retiram nossos órgãos para vender para os ricos que estão morrendo.
-Verdade? E a polícia o que faz?
-Nada, Adib. Simplesmente ele trabalha com a polícia em nossa captura, dizendo que vai alimentar e educar numa escola. Tenho muitos amigos que partiram e não mais voltaram.
-Obrigado pela notícia.
-Você quer ajuda? A sua perna não suporta o seu peso desse jeito.
-Obrigado Abud. Vou tocar agora e quero ver se alguém me ajuda.
O menino afegão apoiou a perna, segurou o sax com as duas mãos e com a vibração da palheta de madeira fixada na boquilha emitiu o primeiro som tocando uma canção afegã. Instantes, várias pessoas se aglomeraram próximo o menino que tremia com o instrumento quase do seu tamanho. Abud com uma lata na mão recolhia o dinheiro que encheu de notas afeganes, sorrindo fazia gestos para o amigo.
A noite já chegava, e Abud indagou?
-Aonde vai dormir?
-Não sei.
-Você não quer ir lá pra casa? A mãe vai adorar você.
-Então, vamos lá.
Ao passarem por uma rua comercial, Adib ouviu um som melódico vindo de uma loja, e foi até lá com o amigo conferir. Ouvindo e guardando na memória as batidas das notas musicais da cantora Beyoncé, ele disse:
-Abud, essa melodia é linda. Vou perguntar ao empregado da loja quem canta essa canção bonita.
Ao ser informado pelo vendedor o nome da cantora, Abud convida o amigo, dizendo:
-Vamos que já é tarde, não podemos ficar à noite no centro de Cabul, é perigoso.
Ao chegar ao bairro pobre de Abud, ele teve uma recepção maravilhosa na residência do menino, não faltaram carinhos que molharam os olhos do pequeno garoto de Marja que soluçando, disse:
-A senhora se parece com minha mãe. Ela tem os olhos verdes como os seus e as mãos macias como a neve.
-Obrigada meu filho. Agora você tem uma casa e uma família, com o dinheiro que ganho na venda de sacolas, quero vocês dois estudando e sendo como verdadeiros irmãos.
Entusiasmado pelo acolhimento, Adib pediu:
-A senhora deixa o Abud trabalhar comigo no centro enquanto eu toco, ele recolhe todo o dinheiro.
-Claro. Agora vá tomar um banho e venha jantar conosco.
No dia seguinte, os dois amigos se encontram no centro comercial de Cabul com as ruas superlotadas de transeuntes. Ao retirar o instrumento da caixa de madeira, uma multidão em sua volta observou o tamanho do menino com o sax nas mãos. Alguém no meio da multidão pediu que tocasse Beyoncé. O guri tentou localizar a voz feminina, porém, sem resultados. Segurando firme a boca na boquilha do grande instrumento de metal, sustentou pela primeira vez aquela doce melodia que mexeu com a sua cabeça, arrancando aplausos e gritos das jovens que dançavam ao ritmo do sax. E as notas afeganes caiam aos seus pés que repetia a música. Feliz, e balançando o compasso com a perna mecânica, o menino suava e as cordas vocais cresciam e desciam com o forte sopro.
Vozes complementavam:
-Toca mais, adorei!
-Vai garoto!
-Ó que lindo! Uma criança tocando Beyoncé!
Vídeo:
http://www.youtube.com/watch?v=960leuUHINE